sexta-feira, 10 de julho de 2009

Unidade misteriosa esconde jovens infratores

matéria da caros de julho.

Criada em 2006, a prisão-hospício é um depósito do Judiciário onde estão internados os casos considerados perigosos devido ao diagnóstico de “transtorno antissocial”.

Se Roberto Aparecido Alves Cardoso não fosse interno da Unidade Experimental de Saúde (UES), na Vila Maria, em São Paulo, quase nada se saberia do lugar. Digitando o nome da instituição no Google, 1.022 ocorrências aparecem, a maioria sobre o dia em que o jovem foi encaminhado para lá.
Roberto Alves Aparecido Cardoso, mais conhecido como Champinha, foi um dos acusados pelo assassinato do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, na cidade de Embu Guaçu, em São Paulo, no ano de 2003. Os jovens, que eram estudantes do São Luiz, colégio da burguesia paulistana, namoravam e foram acampar durante o feriado sem que suas famílias soubessem.
Em um primeiro momento foram dados como desaparecidos, mas dias depois o mistério se revelou: o casal foi sequestrado por moradores da região. Felipe foi morto com um tiro de espingarda disparado por Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco. Liana foi mantida em cárcere privado sendo estuprada e torturada, até ser morta a facadas por Champinha.
Todos que fizeram parte do crime - além dos já citados participaram do estupro Antônio Caetano, Antônio Matias e Agnaldo Pires - foram condenados. Champinha, na época com 16 anos, foi levado para a Febem, hoje Fundação Casa, para cumprir os três anos previsto pelo ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, em medida socioeducativa.
Um dos poucos links que aparecem no Google, e não ligam Champinha à UES, é do próprio site da Fundação Casa. O conteúdo, do ano de 2006, informa sobre a construção da Unidade. A proposta era criar na cidade de São Paulo um sistema de referência no tratamento de jovens que cumprem medida socioeducativa e apresentam distúrbios psicológicos, através da parceria Fundação Casa (na época FEBEM), a ONG Santa Fé, e a Universidade Federal de São Paulo, que se responsabilizaria pelo tratamento psiquiátrico. Era um terreno com cinco casas, abrigando até oito jovens cada.
“O que a gente escuta nos bastidores é que o Dr. Raul Gorayebe, professor de psiquiatria da Unifesp e idealizador do projeto, queria escolher tanto os profissionais, quanto os jovens que iriam ser encaminhados para a Unidade, e a Fundação Casa não concordou. Com isso a parceria foi quebrada”, conta Fernanda Lavarello, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Com a parceria desfeita, e a obra concluída, a UES ficou seis meses vazia.

Champinha e a UES

Pouco antes de Champinha completar três anos da medida socioeducativa, e ser colocado em liberdade, o Ministério Público entra com o processo para converter a medida socioeducativa em medida protetiva de tratamento psiquiátrico com contenção, o que garantiria sua permanecia na Fundação Casa até os 21 anos.
Na iminência da segunda medida se extinguir, o Estado entra com pedido de interdição civil cumulada com internação hospitalar compulsória no Fórum de Embu Guaçu. A juíza expede uma liminar favorável ao Estado, pedindo a transferência de Champinha para a Casa de Custódia de Taubaté.
A internação hospitalar compulsória, modalidade mais grave prevista pela lei 10.216/2001 da Reforma Psiquiátrica, não deriva de um crime, mas de um laudo médico que constate a necessidade do internamento. A gravidade é que a internação independe da vontade da própria pessoa, ou de sua família.
“Para esse tipo de internação, o artigo sexto da lei diz que é necessário fazer um laudo médico circunstanciado (naquela oportunidade), e isso não aconteceu, eles usaram os laudos feitos na ocasião da medida socioeducativa”, diz Daniel Adolpho Assis, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDACA Interlagos), e advogado do jovem. Outra inconsistência que Daniel aponta na liminar, é que Champinha não poderia ser encaminhado para a Casa de Custódia de Taubaté por ele ainda estar sob respaldo do ECA, além de que a Casa de Custódia só recebe adultos que cometeram crimes e apresentam transtorno mental.
Nesse meio tempo Champinha foge da Fundação Casa, logo é pego e levado para a UES.

A refundação da UES
Depois de seis meses vazia a UES recebe seu interno mais famoso em maio de 2007. Em novembro desse mesmo ano o governador de São Paulo, José Serra, expede o decreto 52.419/2007, transferindo o imóvel da UES para a Secretaria de Saúde. Um Termo de Cooperação Técnica entre Saúde, Administração Penitenciária, e Fundação Casa firmava que a UES abrigaria adolescentes e jovens, autores de atos infracionais que cumpriram medida socioeducativa, e tiveram sua medida revertida em protetiva, já que apresentam diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, e/ou alta periculosidade.
Segundo a juíza corregedora do DEIJ, Departamento das Execuções da Infância e da Juventude, Mônica Paukoaski, a saúde mental é um dos fatores importantes que fazem parte da trajetória de recuperação dos adolescentes autores de atos infracionais, já que esses problemas interferem diretamente no resultado do processo sócio-educativo. “Os laudos do Imesc, Instituto de Medicina Social e Criminologia, apresentaram ao Judiciário a necessidade do jovem portador de transtorno mental (os mais comuns eram deficiência mental, esquizofrenia, e transtorno de personalidade) ser acompanhado em local adequado sob contenção”, completa.
“Essa nova Unidade vai na contramão de todas as conquistas da luta antimanicomial e do ECA. O que eles fizeram foi um manicômio judicial para jovens”, diz Fernanda Lavarello, que também faz parte do Grupo Interinstitucional, que debate questões sobre criança/adolescente, justiça, e saúde mental.
A luta antimanicomial é travada no Brasil desde a década de 1980, e sua principal conquista foi a aprovação da lei 10.216/2001, que garante ao portador de transtorno mental que a internação só será indicada depois que todos os recursos extra-hospitalares de tratamento se esgotarem.
Segundo Maria Cristina Vicentin, professora do programa de pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, alerta para que a cidade de São Paulo colocou diversos impasses durante o processo de construção da reforma de saúde mental, como o lobby dos hospitais psiquiátricos que visam interesses mercantilistas na saúde. Para ela, a relação entre periculosidade e loucura é historicamente construída no começo do século XIX, por psiquiatras que entendiam a sua ciência como aquela capaz de identificar a dimensão mais íntima do sujeito que pode emergir a qualquer momento. “Depois da Segunda Guerra Mundial profissionais dos diversos campos se juntaram para fazer a desconstrução dessa idéia, respaldados por estudos epidemiológicos e estatísticos que mostram que não existe proporcionalmente um número maior de pessoas com transtorno mental que cometem atos infracionais, assim os loucos cometem tantos crimes como os ditos normais.”
Em uma pesquisa feita entre os anos de 2005 e 2006, antes da inauguração da UES, a professora apontava para o fenômeno de psiquiatrização do jovem autor de ato infracional, um modo de gestão que usa o transtorno mental para provocar mecanismos de segregação e ampliação do tempo de internação.
Outro fator identificado é a volta do diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, “foi o caso do Roberto (Champinha) que trouxe isso, pois a mídia e a opinião pública fizeram uma pressão tão grande que ou se revia a maioridade penal, ou aumentaria o tempo de internação, que é um projeto em andamento. Mas, como nada saiu do papel, utilizar os mecanismos de internação psiquiátrica, mais interdição, foi o jeitinho que eles deram para driblar a lei”.

Transtorno antissocial
Entre os transtornos de personalidade identificados pelo Imesc está a personalidade antissocial, “na maioria dos casos não havia diagnóstico fechado, mas que o jovem apresentava traços de tal personalidade”, conta a juíza Mônica Paukoaski.
O diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial é questionado por algumas áreas da psicologia, apesar de constar na Classificação Internacional de Doenças Mentais.
Segundo Fernanda Lavarello, é a análise de um comportamento que foi externalizado a partir de um ato de transgressão, negando toda a historicidade do sujeito e o fato de o crime ser produto de vulnerabilidade social. “O cometimento de um ato infracional não implica no cometimento de transgressões futuras, ninguém tem bola de cristal para prever o que vai acontecer.”
Depois do Termo de Cooperação Técnica assinado, mais cinco jovens foram encaminhados para a Unidade Experimental de Saúde, todos com o mesmo diagnóstico: transtorno de personalidade antissocial e alto grau de periculosidade.
E a juíza Mônica Paukoaski alerta: “Apesar de se tratar de questão polêmica, não foi o judiciário que preconizou a necessidade de atendimento sob contenção, mas os médicos de órgão oficial do Estado. Além de que os jovens que se encontram hoje na UES não estão internados por determinação do DEIJ, mas foram interditados pela justiça comum.”
No caso específico de Champinha, “o Roberto foi pego como bode expiatório para inaugurar essa instância arbitrária e de exceção que a Justiça está utilizando. Todos os jovens que estão lá cometeram crimes contra pessoas da classe média e alta em suas cidades de origem, que ganharam grande repercussão na mídia”, diz Daniel Adolpho. Este completa sua denúncia: “ninguém tem coragem de cumprir a lei e assinar pela libertação do Roberto porque ninguém quer enfrentar a opinião pública e o pai da Liana, que tem bastante influência financeira e política..”
A juíza rebate a crítica, “Se existe uma anomalia psíquica, e a área médica aponta isso, não podemos devolvê-los à sociedade sem o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar.”
Mas há outras s irregularidades. Daniel Adolpho conta que não existe um regimento interno da Unidade, que quem é internado não tem previsão do tempo de pena que irá cumprir, e que nenhum tratamento psíquico acontece no local. “O que o Roberto me conta é que mais ou menos a cada 15 dias vai um psicólogo lá, conversa um pouco com ele, pergunta precisa de algum remédio, e só. Nem o jovem, nem o seu defensor público, podem ter acesso ao prontuário médico, violando mais uma vez a lei 10.216.”
“Mesmo quem se diz defensor dos direitos humanos torce o nariz quando se fala sobre o caso do Roberto, mas é importante saber que quando ele fosse liberado ele não ia simplesmente sair da Fundação Casa. As psicólogas que acompanharam todo o processo dele já estavam articulando uma rede em outro estado pro qual ele e toda a sua família mudaria. Eles entrariam no serviço de proteção a testemunha, se necessário até mudariam de nome, com isso ele continuaria tendo um acompanhamento judicial”, finaliza Fernanda Lavarello.

Ninguém sabe, ninguém viu.
A assessoria de imprensa da Secretaria da Saúde foi procurada pela reportagem para tentar uma entrevista com o chefe de Gabinete Nilson Paschoa. A resposta foi: “O que temos a informar é que a decisão sobre a internação das pessoas atendidas na Unidade Experimental de Saúde é feita pela Justiça. A Secretaria de Estado da Saúde mantêm esta estrutura para atender pacientes encaminhados por decisão judicial.”
Tanto os laudos periciais que encaminham os jovens para a UES, quanto o tratamento psiquiátrico daqueles que cumprem medida socioeducativa na Fundação Casa são feitos pelo Nufor, Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas. O coordenador do núcleo, Daniel Martins de Barros, informou:
“O Nufor vem prestando assistência psiquiátrica apenas aos internos da Fundação Casa em unidades regulares da capital. A Unidade Experimental de Saúde não está sob responsabilidade da Fundação Casa, não fazendo parte do nosso escopo de assistência.”
Também foi procurado Vitor Manuel da Silva Monteiro, diretor da UES, mas um funcionário da administração disse que ele estava de férias fora do Brasil e não havia ninguém ocupando seu cargo nesse período, além de que nenhum funcionário estaria capacitado nem autorizado para falar com a imprensa.
“A Unidade Experimental de Saúde desvirtuou-se do seu caminho e não está funcionando da forma proposta pelo judiciário, jamais uma unidade de saúde mental deve assumir feições de manicômio judiciário. O transtorno de personalidade antissocial é um diagnóstico sério que precisa ser enfrentado com responsabilidade. Jovens que contam com esse diagnóstico precisam de uma atenção especial, a idéia não é segregar, mas acompanhar o jovem até que se obtenha algum avanço”, finaliza a juíza Mônica Paukoaski.

Camila Martins é repórter.

Um comentário:

  1. Excelente matéria! Estou iniciando a escrita do meu projeto de doutorado e quero investigar a interface justiça/saúde mental na criação de dispositivos de encarceramento de "loucos" em pleno século XXI, após trinta anos de luta antimanicomial. Se estiveres ainda acompanhando a UES ou outros espaços semelhantes, agradeceria muitíssimo se pudesse postar aqui ou ainda me enviar. Meu email é alvarezalyne@hotmail.com Obrigada!

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