terça-feira, 9 de junho de 2009

Mulheres de Coragem

matéria que está na Caros Amigos de junho, espero que gostem.

Vítimas da violência doméstica, elas encontram nas casas-abrigo a proteção e a chance de mudar de vida

Camila Martins

Ana é a responsável pela limpeza do centro social de uma igreja na grande São Paulo. Morena bonita, beirando os 35 anos, conversa bastante e sorri enquanto trabalha. Quando dá meio-dia, hora de seu almoço, avisa: “Vamos porque só tenho uma hora.” Enquanto seguimos em direção a uma das salas, explico que a matéria é sobre abrigos para mulheres que sofrem violência doméstica. Ana começa a tremer, e assim que sentamos ela diz, com voz engasgada: “falar disso ainda é muito difícil pra mim.”
Baiana de Salvador, Ana conheceu seu ex-marido, D., quando ainda era menina. “Ele sempre ficou atrás de mim, dizendo que me amava, até que, aos 18 anos, aceitei namorar com ele”. Depois de um tempo juntos, D. mudou-se para São Paulo para “tentar a vida”. Sete meses depois, Ana foi fazer uma visita ao namorado, e acabou ficando. Nunca suspeitou da agressividade do companheiro.
O primeiro soco aconteceu depois de quatro meses na capital paulista. “Estávamos em uma festa quando percebi que ele estava me desrespeitando, dando em cima de outras mulheres na minha frente. Falei isso pra ele, mas ele não respondeu nada. Assim que chegamos em casa, ele se transformou. Trancou a porta do quarto e me deu um soco na cara. Me fez deitar de lado no chão, sem roupa, e disse que se eu me mexesse ia me esfaquear. Fiquei assim das seis da manhã até às sete da noite”, recorda Ana. A alegação que D. dava para bater na esposa era que Ana não era mais virgem quando começaram o relacionamento.
Também foi nessa época que D. ficou desempregado e entrou para a vida do crime. Não demorou muito pra que fosse preso. No feriado de sete de setembro, Ana estava em casa quando o marido apareceu. Tinha fugido. “Fiquei com medo, mas deixei que ficasse lá porque eu ainda gostava dele. Foi dessa vez que eu engravidei. Em nenhum momento ele aceitou a gravidez, me batia e xingava toda hora, dizia que ia abrir minha barriga com a faca e tirar a criança de dentro.”
Com o tempo, as agressões foram aumentando. Ana era agredida verbalmente. Tapas e pontapés também eram comuns. Até que chegou a vez do abuso sexual.
Depois de um assalto que D. e os amigos fizeram, eles foram comemorar com uma festa na casa de Ana, que durou o dia todo. “Eles usaram muita droga. Fiquei esperando do lado de fora, até que anoiteceu e eu precisava colocar meu filho pra dormir. Quando entrei em casa, ele olhou pra mim e disse: ‘me espera lá em cima porque hoje eu estou animado e quero transar com você a noite inteira’. Deitei na cama e fingi que estava dormindo, estava morrendo de medo. Quando ele chegou perto, cumpriu o que disse. Me estuprou durante toda a noite.”

Mais violência
Ana não reagia. Entrou em depressão, largou o emprego, parou de tomar banho e chegou a pesar 38 quilos. Só saía de casa às segundas-feiras, para levar o filho na fonoaudióloga. Nunca buscou ajuda, até o dia da inauguração de uma Casa de Referência em sua rua. No entanto, mesmo sabendo dos seus direitos, Ana não quis fazer boletim de ocorrência.
Só depois da terceira fuga de D. da penitenciária, Ana começou a mudar de opinião. Mesmo sem ter mais nenhum vínculo afetivo com o marido, ela aceitou a permanência dele na casa até que arrumasse um lugar para ficar. Enquanto isso, ele dormiria em um colchonete na cozinha. As agressões só pioraram.
“Ele me xingava o dia inteiro de puta, de vagabunda, dizia que eu só estava fazendo aquilo porque estava com outro homem. Era tanto palavrão que o meu filho falava: ‘respeita a minha mamãe, meu papai’”.
Muitas noites, Ana acordava assustada achando que estava sendo alisada. “Tinha certeza que ele estava fazendo isso, mas fazia eu me passar por louca”. Certa vez, acordou no meio da noite com um barulho de faca raspando no chão. “Fui correndo na cozinha ver o que estava acontecendo, abri uma das gavetas e vi que o facão de cortar coco tinha sumido. Ele começou a dar risada e me mostrou o facão escondido embaixo do colchão, disse que ia me matar naquela noite. Acho que ele só não me matou porque meu filho ajoelhou nos pés dele implorando pra ele não fazer nada.”
O ponto final chegou no dia em que Ana virou a agressora. “Mais uma vez, durante a noite acordei com ele querendo se masturbar em cima de mim, com o meu filho deitado do meu lado. Fiquei maluca, fora de mim. Cravei minha unha na bochecha dele até sair sangue. Ele não teve reação nenhuma, só pedia para eu parar de fazer aquilo em nome do nosso filho – argumento que eu sempre usava quando ele me batia. Enquanto isso, eu enchia ele de soco, de mão fechada mesmo. Mordia com tanta força, que tirava os pedaços de carne da boca. Só parei quando meu filho acordou chorando e viu o pai todo ensanguentado. Foi ali que eu vi que não podia mais continuar naquela vida, dentro daquela casa. Quando amanheceu, o D. saiu, eu peguei algumas peças de roupa, filho, cachorro, e fui direto pra Casa de Referência. De lá, fui levada pra um abrigo”.

Luta do movimento feminista
“Mas o que é um abrigo?”. Tal pergunta, que não saía da cabeça de Ana durante o percurso entre a Casa de Referência e o local, também é uma questão obscura pra maioria da população. Geralmente confundido com albergues para pessoas que estão em situações de desamparo social, como andarilhos e meninos de rua, as casas-abrigos são resultado dos anos de luta do movimento feminista no Brasil.
Durante a década de 1970, o Brasil vivia seus anos mais duros. A ditadura militar assolava o país com repressão e tortura. Enquanto o debate sobre o tema fervilhava, o movimento feminista trazia a público outro tipo de violência que acontecia no âmbito privado, a violência contra a mulher.
O período foi marcado por dois assassinatos que ganharam grande repercussão. Em 1970, o procurador da Justiça Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo matou com 11 facadas a esposa Margot Proença Gallo. Em 1976, Doca Street atirou três vezes no rosto e uma na nuca da namorada Ângela Diniz. Ambos os assassinatos foram motivados por ciúmes e supostas traições, e, quando levados à justiça, foram justificados como legítima defesa da honra.
No entanto, foi só na década de 1980 que os assassinatos de mulheres pelos seus parceiros foram reconhecidos como crime. Mais uma vez, as feministas tomaram à frente, na ausência de políticas públicas para o tema. Assim, criaram, em 1980, o SOS Mulher, centro de apoio que contava com trabalho de advogadas, psicólogas e grupos de reflexão, tudo com trabalho voluntário.
Pouco depois, foi criada a Delegacia da Mulher, e em 1986, a Secretária de Segurança Pública montou o Comvida, Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, primeira casa-abrigo do Brasil. Hoje, o país conta com 70 abrigos, sendo 16 deles no Estado de São Paulo.
A casa abrigo é o local onde são levadas mulheres que estão sendo ameaçadas de morte por seus companheiros. Com endereço sigiloso, a mulher que procura esse serviço já é vítima de violência doméstica crônica.
Quando consegue identificar essa situação, é necessário que ela deixe tudo pra trás: casa, emprego, amigos. É recomendável, até, que tire o filho da escola. Só assim consegue preservar sua vida. E foi isso que aconteceu com Ana.

Políticas públicas
Mas o abrigo não é um hotel, nem um mero depósito de mulheres. Quem explica a função do serviço é a teóloga Haidi Jarschel. De acordo com ela, para apresentar resultados, uma política de abrigo deve estar ancorada em um tripé: “Na segurança e proteção das mulheres e seus filhos, garantindo boas instalações, alimentação, higiene, e ética dos profissionais em relação ao sigilo absoluto do lugar; no trabalho psicossocial, no sentido de fortalecer essas mulheres para elaborar um novo projeto de vida que rompa com o ciclo de violência; e na rede de políticas publicas em volta que possam oferecer suporte quando ela sai do abrigo. E este é o grande problema”.
Haidi foi por vários anos coordenadora do Abrigo Regional do ABC, projeto bem sucedido que, através de um consórcio entre as sete cidades da região, já atendeu centenas de mulheres.
Para a teóloga, o trabalho regional é interessante não só pelo fato dos municípios dividirem os gastos com o serviço, que custa, em média, de R$ 800 a R$ 1000 por pessoa (esse valor inclui apenas alimentação, água, luz, e pagamento dos profissionais que trabalham na casa); mas porque também contribui com a segurança da mulher.
No entanto, mesmo com todos os benefícios que o abrigo pode proporcionar, ele não deve ser entendido com um fim, nem mesmo trabalhar sozinho, apontam especialistas. Hoje, o serviço de apoio à mulher encontra-se ancorado na tríade: casa de referência, delegacia da mulher e casa-abrigo. Porém, todas as entrevistadas registraram o sucateamento das delegacias, que trabalham com funcionárias mal treinadas.
De acordo com a coordenadora da Casa de Referência Eliane de Gramont, Graziela Acquaviva, o abrigo também tem que estar ligado a uma rede de políticas públicas em sua volta. No entanto, na prática, não é isso que acontece, pois “em tempo de Lei Maria da Penha, o abrigo deveria ser o último dos recursos. Se a polícia garantisse a segurança daquela mulher que conta com a medida de proteção que impede a aproximação do marido, ela não precisaria deixar tudo pra trás”, critica.

Ausência de dados
Graziela lembra também que “outra coisa muito importante que não existe é uma política de aluguel social, que seria uma alternativa ao abrigo, pois a mulher, recebendo a ajuda do Estado, conseguiria reconstruir sua vida com autonomia”, afirma.
O trabalho com mulheres vítimas de violência se torna mais complicado, pois no Brasil não existem dados oficiais sobre a violência doméstica. De acordo com a psicóloga Paula Prates, que durante cinco anos foi coordenadora do abrigo Casa da Mamãe, e que deixou o trabalho para fazer mestrado sobre mulheres abrigadas, “como nunca fizeram uma pesquisa para ser usada como referência nos atendimentos, resolvi fazer o mestrado pra entender a violência de maneira teórica”.
Paula relata que durante os anos de trabalho no abrigo, “o que mais me intrigava era o fato de que o número de mulheres que passavam por lá e conseguiam depois reconstruir uma nova vida, era quase o mesmo daquelas que voltavam para o agressor”.
Na avaliação da pesquisadora, o foco do trabalho dos abrigos deve ser a desconstrução da maneira como as abrigadas se reconhecem como mulher, e a construção de uma nova identidade, tentando “fazê-las entender que sofrem violência de gênero, ou seja, que apanham de seus maridos porque vivemos em uma cultura patriarcal que legitima a dominação do homem sobre a mulher”.
Para a teóloga Haidi Jarschel, a casa-abrigo não é apenas um lugar de esconderijo e proteção, mas também representa uma grande oportunidade das mulheres refazerem suas vidas. Foi isso mesmo que Ana fez. Um mês vivendo no abrigo foi suficiente pra que ela se reerguesse. Cheia de força e vontade de lutar, foi atrás de emprego. Desde então, está trabalhando no centro social.
Apesar do prazo estipulado para permanecer no abrigo ser de seis meses, como seu caso envolvia um parceiro criminoso, Ana ficou abrigada por onze. Durante esse tempo, aproveitou para juntar dinheiro, e, quando saiu, alugou uma casa para ela e o filho, pagando três meses adiantados.
Desde então, toda sua atenção está voltada aos tratamentos psicológicos que seu filho recebe. O histórico de violência desencadeou crises nervosas e de ansiedade, que o faz comer tudo que vê pela frente, como lápis de cor e cola.
Mas mesmo com todas essas vitórias, Ana ainda é uma mulher em risco. Seu ex-marido está preso em Recife, Pernambuco, por latrocínio (roubo seguido de morte), e ameaça, de dentro da prisão, a família de Ana.
Por isso, seus familiares não sabem onde ela mora, nem têm seu número de telefone. Ana olha no relógio, 13 horas em ponto: “Agora eu preciso ir, vou almoçar rapidinho pra voltar ao trabalho”. Trocamos um abraço forte, agradeço pela entrevista, ela responde: “Eu que agradeço por me deixar falar”.

Camila Martins é repórter.

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